7/29/2008

O vale encantado

A cidade mais bonita do Peru se chama Ollantaytambo. Tá, sei que parece muita presunçao afirmar isso desse jeito, sendo que nao conheço nem 1/3 do que existe pra conhecer neste país. Mas é que Ollanta é tao legal, tao legal que creio ser impossível que exista concorrência fora desse circuito turístico Arequipa-Cuzco-Puno tradicional.

Vamos às razoes. Primeiro, as casinhas e prédios do centro sao quase todos rebocados e pintados (o que é raríssimo por aqui, pois parece que no ramo da construçao civil peruano qualquer coisa além de tijolo e cimento é supérfluo). Segundo, porque além disso todas sao bonitinhas e estilosas, no estilo San Pedro de Atacama. Terceiro, porque a cidade fica localizada na beira de um rio de água azul cristalina, bem no meio de um vale cercado de montanhas verdinhas tipo as de Machu Picchu. E quarto, porque numa dessas montanhas a dois quarteiroes da Plaza de Armas ficam umas das ruínas mais legais que vi nessa viagem: uma longa construçao em curvas de nível de terraços para plantaçoes, celeiros, casinhas, templos e tudo a que uma boa cidade pré-colombiana tem direito.

Além do mais, é muito legal o jeito que esses sítios arqueológicos do Peru se integram à vida normal da galera. O local cobra entrada, é fechado e tudo, mas mesmo assim tem muita gente que vive do lado de dentro dos muros, criam ovelhas e lhamas, lavam roupa no riachinho e coisa e tal. Também vi a mesma coisa em Tambo Machay, um antigo local de banho inca a alguns quilômetros de Cuzco onde, mesmo apesar das hordas de turistas, ainda é possível ver os índios pastoreando e burrinhos pastando a apenas alguns metros da entrada.


Ollantaytambo é na verdade uma das últimas cidades do que o pessoal aqui chama de Vale Sagrado, uma faixa sinuosa de terras planas à beira do rio Urubamba que vai desde uns 40km ao norte de Cuzco e culmina na cidade de Águas Calientes, no sopé do morro onde está Machu Picchu. Além de Ollanta, as duas cidades mais importantes sao a própria Urubamba - magnificamente localizada numa depressao rodeada de montanhas nevadas - e Pisac - um pequeno povoado também na encosta de umas ruínas em curva de nível charmosíssimas.
Em Pisac, inclusive, tive a sorte gigantesca de chegar lá coincidentemente na mesma hora em que começava o desfile de folclore popular, em comemoraçao à independência do Peru, e isso foi muito louco. O pessoal aqui leva o negócio a sério, as fantasias sao sinistríssimas e isso tudo me rendeu milhoes de fotos sensacionais, que prometo postar assim que voltar.
Hoje já estou em Puno, nas margens do Lago Titicaca. O lago nem é tao bonito, (acho que vai demorar um pouco pra eu achar outro lago bonito depois de ter morado 8 meses em Lake Tahoe e ter visto Interlaken), mas o passeio turístico padrao daqui é visitar a ilha dos Uros, uns índios meio malucos que moram em umas ilhas flutuantes feita de raízes e brotos. Achei legal, mas nao é muito a minha praia fazer esses passeios gringo-conhecendo-a-pureza-da-cultura-local, principalmente porque a tal cultura nao é pura coisa nenhuma e, no fundo no fundo, tudo é só encenaçao pra atrair turistas. Inclusive, esse é o verdadeiro motivo pelo qual as ilhas surgiram, e na verdade verdadeira, os índios que estao lá nem sao os antigos Uros mais, só pegaram a fama emprestada, os safadinhos...
Espero gostar mais das ilhas do lado de lá da fronteira, pra onde vou amanha. La Paz também me espera, e o sentimento é recíproco. Pra nao quebrar a tradiçao, posto de novo em dois dias. Beijos!
PS: Sim, o layout bugou. Fica esse basicozinho mesmo até eu voltar, e depois eu vejo o que faço.

7/27/2008

Cartão postal

Creio que substimei Machu Picchu enormemente. Culpa daquela foto batidaça das ruínas com o Pão de Açúcar atrás, que de tantas vezes repetida acabou mais atrapalhando que ajudando. Fez o lugar parecer simples demais, normal demais, acho.


Mas lá é tudo menos isso. Mesmo com todos os percalços, acredito plenamente que aquele lugar pertence a outro mundo, e é praticamente impossível negar que existe algo de sagrado no ar quando se olha a cidade cor-de-marfim no topo do morro, cercada pelas montanhas verdes e pontudonas cobertas pela serração. E até a maratona épica que se tem que fazer até chegar lá - eu, por exemplo, tive que pegar um táxi de Cuzco até Ollantaytambo, de lá fui de trem até Águas Calientes, acordei às cinco da manhã pra comprar meu ticket e encarar uma subida de quase 1 hora e meia até as ruínas, tudo isso a custo de uma pequena fortuna - ajuda a criar essa aura mística do lugar.

Entretanto, acho que meu prêmio de ruína favorita continua com Teotihuacan, na Cidade do México. Talvez porque foi a primeira, mas ainda lidera o ranking (agora com um pouco menos de folga, talvez).


Sobre Cuzco, bom, a cidade é bonita, mas acho que esperava um pouco mais. As ruínas perto da cidade são interessantes, mas também não são tão doidas assim. Minha chegada lá foi tranquila, e acostumei bem com a altitude depois de sentir uma dor insuportável no ouvido esquerdo e tomar cinco xícaras de chá de coca num intervalo de 3 horas. O efeito foi bom, mas me assustei um pouco quando me peguei involuntariamente cantando Secos e Molhados e lambendo a parede interna da catedral (que por sinal é simplesmente maravilhosa, tanto por fora quanto por dentro).

E pra não quebrar a tradição, ainda tive a sorte fenomenal de estar num quarto de albergue com janela virada pra paça principal de uma das maiores cidades do país bem no final de semana da independência. Sorte ou azar, já que tudo fica um pouco mais caro nessas épocas, mas deu pra curtir um desfile que durou o dia inteiro.

No mais, curti minha estadia aqui em Águas Calientes. Encontrei por milagre uma cama barata, fiz amizade com o dono, joguei bola com os peruanos (o que foi uma experiência muito esquisita, visto o jeito bizarro que as peladas se desenvolvem por aqui) e tomei cerveja com os tiozoes do meu time. Saio daqui amanhã cedíssimo, e tenho boas expectativas para o dia. Escrevo novamente em Puno ou na Bolívia, daqui a uns dois dias. Até lá!

7/24/2008

Rascunhos pré-históricos

Acabei de fazer uma das coisas mais legais que eu já fiz na minha vida (2). Há exatas duas horas e meia, estava sentado na cadeira de co-piloto a cerca de 3.000 pés de altitude relativa num aviaozinho teco-teco sobre o deserto de Nasca, no centro-oeste do Peru. Pra quê? Pra ver as linhas, ora bolas.

Aeroporto de ET? Sistema de irrigaçao subterrâneo? Alucinaçao coletiva? Teorias conspiratórias? Nao sei, mas o vôo foi sensacional; durou cerca de meia hora e foi possível ver pelo menos umas 15
figuras grandonas e reconhecíveis, sem contar a quantidade quase infinita de traços e riscos aparentemente sem sentido que cortam esse pedaço do altiplano peruano.

O único revés foi meu estômago de moça, que quase me fez pedir penico em pleno vôo. Imagina que lindo seria, eu vomitando no painel de controle do teco-teco no meio do nada, blé. Fiquei mareado ainda por muito tempo, mas a tradicional coca-zero nao traiu a confiança e já estou praticamente recuperado.


O passeio custou os olhos da cara, mas acho que valeu a pena. Destaque para a confusao que arrumei na madrugada/manha: cheguei em Nasca as 3 da matina, cochilei um pouco na rodoviária até o Carlos, um vendedor de passeios, me levar pra ir dormir no sofá da agência dele, enquanto ainda nao estava aberta. Dormi até as 6 e meia, combinei o preço com o outro Carlos - o chefe, homônimo - e ficamos rodando procurando um caixa-automático até que encontrei duas americanas que me disseram que estavam pagando uns 20 dólares a menos que eu. Desisti de ir com os Carlos e, quando estava indo à agência delas, fui pego no flagra e criei uma espécie de crise diplomática entre as duas companhias. Um dos Carlos gritava com o cara da agência, enquanto o outro e o motorista falavam que eu nao tinha palavra, que palavra de homem valia muito no Peru, que eu teria que pagar dez soles pelo táxi, etc etc. Reclamaram tanto que eu cedi, pois caiu a ficha que eu estava sendo muito mesquinho por meros 10 dólares (que era a diferença real), e acabei indo com a dupla de xarás mesmo.

Mas no fundo, acho que essa confusao só serviu pra coroar minha seqüência maluca de interaçoes com os locais aqui no Peru. Começou em Tacna, na fronteira, quando dois homens ficaram me oferecendo "macoooña" e depois prostitutas. Seguiu pra dentro do ônibus, quando uma senhora sentada do meu lado começou a rir e a me mostrar em seu celular um .gif animado de uma loira mostrando os peitos. Continuou em Arequipa, onde fiz um city-tour sinistro com um estudante de turismo chamado Manuel que no final das contas era traficante pra turista. E teve seu quase-ápice com o senhor da lavanderia, interessadíssimo em saber qual era a idade média de iniciaçao sexual no Brasil.

Arequipa, aliás, é uma cidade maravilhosa, a mais bonita até agora. A vista dos vulcoes e montanhas nevadas em cuja base está localizada é de tirar o fôlego, uma daquelas coisas que é impossível cansar de olhar. E o contraste com os belíssimos prédios e igrejas coloniais impressiona ainda mais. Ainda visitei um museu que guarda a -20 ºC os restos mortais de uma menina inca encontrados no topo de um dos vulcoes dos arredores, o que também foi bastante legal.

Sobre o Chile, nem tenho muito o que falar. Visitei apenas três cidades, e bem rapidamente. San Pedro é bonitinha, as ruas sao de terra batida e tudo gira em torno do turismo, meio no estilo Milho Verde. Calama é um pouco por norte, nao tem nada de muito legal mas é interessante pela sua organizaçao - a rua pra pedestres parece até Europa. E Arica, quase na fronteira, foi meio decepcionante já que é cidade de praia mas o tempo estava horrivelmente nublado.

Hoje mesmo pego o ônibus pra Cuzco. Acho que lá supostamente é pra ser o ponto alto da viagem, já que vou ficar uns quatro dias, encontrar novamente Branco e Joaozinho, sair a noite e beber, ir pra Machu Picchu, etc. Escrevo de lá, e prometo dessa vez inovar o começo do próximo post, aconteça o que acontecer. Abraços!

7/21/2008

Deserto do frio incomensurável

Acabei de fazer uma das coisas mais legais que já fiz na vida. Acordei quatro e meia da manha, num dormitório de sete camas e sem calefaçao a algumas horas de terra, areia e sal da cidade mais próxima. O alojamento era simplérrimo, de chao de terra batida, sem esgoto e com eletricidade só nas três primeiras horas da noite, que é quando ligam o gerador. E acordei também foi modo de dizer; na verdade quase nao consegui pregar os olhos, e apesar de já ter dormido duas noites razoavelmente bem após aquela experiência trágica em Potosí senti de novo os mesmos sintomas do soroche, um mal bastante sério e perigoso como bem frisou minha querida amiga Juju no comentário do post abaixo.

Mas de qualquer jeito, nao foi o bastante pra desanimar. Saímos do alojamento às cinco debaixo de um frio de -15 graus celsius, chegamos num poço de água termal uma hora depois e, sem pensar duas vezes, desci do Landcruiser, troquei as duas calças e ceroula por um calçao estilo copa-de-70, pulei na água de gorro e fiquei boiando enquanto os pêlos da minha barba congelavam e o sol nascia atrás das montanhas e refletia nos vapores d'água. Simplesmente sensacional.

Ainda passei um aperto depois. Com medo de morrer num choque súbito de hipotermia, esperei uns quarenta minutos antes de sair pra ver se esquentava um pouco lá fora e parava de ventar tanto. Finalmente tomei coragem, me levantei e pisei do lado de fora do poço só pra daí perceber que minha mochilinha com roupa e toalha nao tava mais aonde eu a havia deixado. Pensei na hora que deveria ser alguma brincadeira dos israelitas que estavam viajando comigo, pois eles faziam isso o tempo todo. Fui correndo de calçao no frio infernal até o carro e vi que ele tava trancado e ninguém estava por lá. Dei algumas voltas e o máximo que encontrei foi uma inglesa que tinha rachado o quarto comigo dois dias atrás, que nessa hora nao seria de muita ajuda. Voltei pro poço, procurei um pouco melhor enquanto tentava controlar os calafrios involuntários e finalmente encontrei minhas coisas, num lugar completamente diferente de onde eu tinha posto. Mas aí eu já quase nao precisava da toalha: estava completamente seco, com o cabelo e barbas congelados e quando percebi praticamente nao estava sentindo mais meus dedos do pé, mas consegui evitar a amputaçao por necrose avascular esquentando-os com as luvas e esfregando-os com as maos. No café da manha, encontrei os judeus e eles juraram que nao tinham nada a ver com isso, mas ainda nao acreditei. Isso é que dá viajar sem um frasco de lágrimas de cigano ou dinheiro trocado, pensei.



Talvez esse tenha sido o momento mais legal da minha excursao de dois dias e meio pelas terras áridas do sul da Bolívia, mas o resto também foi maravilhoso. A visao do salar, o maior do mundo, é surreal: de pé sobre uma camada comprimida de sal, a única coisa que dá pra ver é uma imensidao branca e plana que segue infinita até encontrar com as montanhas e vulcoes da cordilheira bem lá no fundo. Vestígios do grande lago que antes ocupava toda essa regiao e deu origem ao deserto, as lagoas também impressionam. A maioria tá congelada essa época do ano, e o branco do gelo em contraste com o amarelo-vermelho da areia e dos picos formam uma combinaçao alucinante. A Laguna Colorada foi a mais legal. A água, por algum motivo, é vermelha, e nao congela toda. Além disso, é lotada de flamingos, aos milhares.

De lá desci pra maravilhosa altitude de 2.500 metros (ar, finalmente!) e agora me encontro em Sao Pedro de Atacama, do lado de cá da fronteira com o Chile. Sempre acho mais legal atravessar fronteiras a pé ou de carro do que de aviao porque dá pra ver melhor as diferenças entre os lugares, e essa travessia nao foi diferente. Passamos a linha, e as trilhas de areia emendadas nos milhares de quilômetros de estrada de terra percorridas por ônibus recauchutados no interior da Bolívia deram lugar a um asfalto maciíssimo e bem sinalizado, e finalmente entrei num veículo que aparentava menos de 10 anos de fábrica desde que saí do Brasil.

Saio de Sao Pedro ainda hoje, com destino a Arica, mais ao norte ainda desse país de uma rua só. Provavelmente também nao durmirei lá, e seguirei direto pra Arequipa, já no Peru. E prometo pra depois um post mais completo sobre a Bolívia, assim que tiver saindo de La Paz, já no final da viagem, ok? Abraços!

7/18/2008

Terra do ar inexistente

Bom, esse vai ser o desafio pra mim mesmo: escrever um post em 15 minutos. Pra isso, um super-resumo cai bem:

Dia 15 de julho: Cheguei em Santa Cruz de La Sierra, fui pro centro, só achei hotel caro, comprei um guia da Bolívia, nao arrumei lugar pra deixar minha mochila, perdi completamente a vontade (se é que ela realmente existia antes) de passar uma noite lá, passeei pelo centro, peguei um ônibus pra rodoviária, no meio do caminho mudei de idéia e comprei passagem pra Sucre, encontrei Joaozinho, Branco e Lipe lá, descobri que eles também estavam indo pra mesma cidade mas em ônibus diferentes, e fomos.

Dia 16 de julho: Cheguei em Sucre lá pelas 10 da manha. Fiz check-in no hostel, tomei um banho (o que foi maravilhoso), escovei os dentes e saí pra passear. Fui na catedral, no mercado, na igreja de la merced, comi uma salteña maravilhosa, encontrei os meninos mais à noitinha e saímos pra comer pizza e beber num barzinho de gringo bem na praça central.

Dia 17 de julho: Acordamos tarde, fiz amizade com o filho do ex-presidente do STF boliviano e fomos lá visitar o antigo local de trabalho do pai dele. Do lado, tem um Arco do Triunfo e uma Torre Eiffel, que obviamente nós subimos apesar da precariedade da estrutura. Depois voltamos pro hostel, pegamos as coisas, encontramos o resto da galera (que os meninos conheceram no trem até Santa Cruz) e pegamos o ônibus pra Potosí, a cidade mais alta do mundo. O trajeto do ônibus, por dizer, foi maravilhoso, e eu tirei um milhao de fotos. Chegamos na cidade um pouco à noitinha, e a altitude nao pareceu fazer nenhum efeito especial a nao ser deixar a gente bebado mais rápido, depois de beber umas cervejas e umas cachaças de uva bolivianas com limao.

Dia 18 de julho: Tive uma das piores noites de sono da minha vida. Acordava toda hora, sem respirar, ofegante, tossindo. Nao tinha ar suficiente no quarto, um dormitorio de dez pessoas. Acordei péssimo, eu e todo mundo que dormiu no meu quarto. A dor de cabeça ainda nao passou, e a tontura também nao. Passeei de manha, comprei um par de luvas, um cachecol e uma passagem de onibus pra Uyuni, e parto daqui a 10 minutos. Devo poder escrever novamente só daqui a uns 4 dias, quando chego no Chile.

7/16/2008

De Bonito à Bolívia

É, deu a louca, e no caminho da rodoviária em Santa Cruz acabei mudando completamente de idéia e peguei um onibus pra Sucre, em direçao oposta à La Paz. Mas é assim que tem que ser, livre como um pássaro, nao é verdade?

Mas isso é assunto para depois. Tanto meu caderninho quanto minha cabeça nao me deixam em paz enquanto eu nao escrever direito o que aconteceu desde o penúltimo post. Portanto, retomarei desde o dia seguinte ao balneário, em Bonito.
Acordei com o sol e fui fazer a primeira excursao do dia, num lugar chamado Gruta do Lago Azul. Fui numa combi lá do albergue mesmo, cheio de gringo paulista e alguns gringo-paulistas. Sobre a gruta, bom, o nome fala por si só e eu confirmo: é azul mesmo. E um azul diferente daquele do balneário, meio brilhante, irradiante, quase que sobrenatural. Vai uma foto do Google, dessas que eu sempre pensei que fossem photoshopadas mas que agora desconfio bem menos.

Voltamos pro hostel, eu e o Gjis, e cochilamos até a hora da excursao da tarde. Nessa hora que descobrimos que nossos relogios naturais funcionam meio que sincronidos, pois no final das contas a gente sempre fazia as mesmas coisas nas mesmas horas. Pegamos outro tour do hostel, mas agora apenas com paulistas, e fomos pro Rio Sucuri, subimos o curso remando e descemos boiando com colete salva-vidas e fazendo snorkel. Tá, eu sei que soa como programa idiota pra gringo (ainda mais com o wetsuit ridículo que tivemos que vestir), mas ainda assim foi bem legal. Era como estar num daqueles protetores de tela do Windows, vendo os peixinhos e as algas passando sem parar. Daí imaginei que estava escutando Sheep e fui curtindo a descida. O guia falou que de vez em quando dava até pra ver lontra, mas como isso já vejo em BH com uma constância até razoável nao me empolguei muito. Mas fiquei orgulhoso quando percebi que fora o único que havia visto um carangueijinho. Great success!


Cheguei morto no hostel, de frio e cansaço. Tomei um banho, sem saber que seria o último dos três dias seguintes. À noite, mesmo com o bolso ainda doendo de ter gasto uma fortuna nesses passeios e nas diárias do albergue, completei a bonança indo pruma pizzaria pantaneira com o Gjis e outros dois gringos que tavam no quarto com a gente, o escocês Freddy e o inglês David. Os caras amaram quando expliquei o que era jogo do bicho, o lance do número 24 e tudo, e o Freddy prometeu que ia procurar algum bicheiro na Lapa pra tentar uma parceria em Glasgow. Respondi que se der certo, quero comissao.

Saí no outro dia às cinco e quarenta pra pegar o ônibus pra Corumbá. Foi aí que começou minha maratona épica de 44 horas com a bunda em estofado num intervalo de dois dias e meio. Entretanto, nao foi nem um pouco enfadonho. Pelo contrário, foi divertidíssimo. A viagem de Bonito até Corumbá foi bem movimentada. Primeiro esperei sentado no ponto esperando até 6:50 da manha o ônibus que deveria ter saído da rodoviária às seis. Quando chegou, eram dois microônibus na verdade, daqueles de 24 assentos. Tive que ficar no segundo, até que o primeiro esvaziasse. Sentei no último assento (ótima dica do Melqui, grande rapaz), me estiquei e dormi. O motorista me acordou mandando trocar de ônibus. Fui andando meio trôpego e chegando lá vi que o outro ainda tava lotado. Nao titubeei e sentei no corredor do meio mesmo - espremido entre duas maes, cada uma carregando um menino - e dormi com a cabeça apoiada nos braços cruzados sobre as pernas enquanto um dos meninos brincava de tocar piano na minha mao. Acordei quando chegamos em Bodoquena, e, ainda nao sei como, as maes já tinham se levantado e saído do ônibus sem me acordar. Um índio de calça jeans começou a me perguntar algo que eu nao entendia, até que descobri que ele queria saber qual cidade era aquela. Disse o nome que tinha visto na placa e voltei a dormir, agora numa cadeira. Acordei quando um bando de cowboys paraguaios entraram, fantasiados de Leandro e Leonardo da década de 90. Um logo sentou do meu lado e ficou gritando e rindo com os outros sem parar. Já eu, nao entendia uma palavra, e comecei a prestar atençao na paisagem. Nesse momento, já tinhamos cruzado o posto de entrada do Pantanal e da janela só víamos pântanos e mais pântanos. É, fez sentido.

Paramos num posto de pesquisa, e dois gringos com cara de cientistas que ficaram o tempo inteiro mexendo num Blackberry desceram. Logo depois paramos numa espécie de acampamento e os paraguaios desceram, ao mesmo tempo em que subia um militar com cara de bonachao e de oculos escuros. Dormi mais um pouco e acordei quando passávamos pelo posto de controle indicando que acabávamos de sair do pantanal. Entramos numa zona de cerrado alto, vi umas fazendas de gado e logo depois chegávamos em Corumbá.


Lá, a epopéia continuou. Como tinha perdido meu guia da América do Sul, fui procurar uma livraria porque nao queria atravessar a fronteira pra Bolívia sem saber simplesmente nada. Até achei várias, mas parece que lá o pessoal chama papelaria de livraria, de modo que acabei procurando guias de viagem sem sucesso nas bancas de jornal e até nas agências de viagens. O calor, diga-se de passagem, era anormal. No final das contas, nao consegui nem guia nem nenhum conselho que prestava, entao chutei o balde e peguei o onibus em direcao a fronteira. Chegando lá, perguntei pras autoridades brasileiras aonde era o posto da Anvisa pra trocar meu cartao de vacinaçao. "Ahn?", me respondeu o primeiro guarda, e isso me desanimou bastante. Fui perguntar do lado de dentro da Receita Federal e o pessoal nem sabia que a Bolívia tava requerindo isso pra ingressar no país. Até que uma lâmpada se iluminou: "Ah, acho que é lá do lado da Bolívia que troca isso, pergunta pra eles lá", me disse um fiscal da receita. Mesmo achando estúpida a idéia de que eu poderia trocar um documento nacional brasileiro por um internacional num posto de controle de um outro país, acabei perguntando por falta de opçao. O policial boliviano, firme e sério, respondeu como se já tivesse aquilo decorado: "Tem que trocar em Corumbá". Merda.

Peguei um mototáxi, rodamos a cidade, achamos o posto da Anvisa (inclusive o funcionário era igualzinho o pai do Henrigol, o seu Antônio), troquei meu cartao e voltei pra fronteira com o mesmo cara. Paguei a ele quinze reais. Um senhor boliviano, taxista, percebeu. Voltei na sala de controle de imigraçao, ganhei meu carimbo e meus trintas dias e mal saía de volta pra rua quando fui interpelado pelo motorista de táxi. "Vai pra onde?", perguntou. "Pra estacao de trem", respondi, mas sem saber direito do que estava falando. Aí começou a ladainha, que eu tinha que pegar taxi, que nao tinha nenhum colectivo que levava até lá, que nao adiantava perguntar pra ninguém porque realmente nao havia, e ali em Puerto Quijarro nao tinha nenhum ônibus, nao tinha nem estrada e blábláblá. O cara parecia meio transtornado, mas como eu tava meio que sem escolha - nao sabia se ainda tinha trem e se era melhor ir direto pra estaçao de ônibus - acabei concordando com o preço de R$8,00 e ele me levou pra rodoviária. No caminho trocamos reais por bolivianos, um por 3,90. E ainda escutei essa pergunta maravilhosa: "Porque você ficou chorando pra me pagar oito reais sendo que pagou quinze pro cara da moto agora há pouco?". Bom, pensei em responder que estava meio pé atrás de pegar um táxi sozinho num país que acabara de pisar pela primeira vez, ou que talvez o estado deplorável da Caravan (que deve ter o dobro da minha idade, no mínimo) tenha me desencorajado um pouco, ou mesmo que talvez o próprio fato de eu já ter gasto quinze reais já significasse automaticamente que eu teria que economizar esse dinheiro de algum jeito, e nao o contrário. Mas fiquei com preguiça de tentar explicar tudo isso em portunhol, entao apenas ri e disse "porque soy pán-duro, talvez", mesmo tendo certeza que ele nao fazia nem ideia do que eu estava falando.


Atravessamos a cidade toda e parecia que a única rua pavimentada era a principal, a que estávamos. Ao invés de prédios, casas ou lojas de alvenaria, no começo se viam apenas tendinhas e barracas. Um pouco depois as primeiras lojas de tijolo apareceram, mas o aspecto deplorável continuava o mesmo. Viramos numa das ruas de terra esburacadas e o taxista, que depois descobri que se chamava Pablo, me deixou na rodoviária. Demorei alguns instantes a mais pra perceber que aquele galpao de aço aberto cheio de caixotes de madeira que serviam como mesa pra uma meia dúzia de homens sem camisa e mulheres com cara de índia era a rodoviária, mas daí me lembrei das histórias que a Juju me havia contado sobre a Bolívia e a ficha caiu. Fiquei um pouco pé atrás, mas lembrei do ditado e fiz como os romanos. Por 75 bolivianos, cerca de 20 reais, comprei minha passagem pro próximo ônibus pra Santa Cruz de La Sierra, que sairia em 20 minutos.

Fui comprar água pra levar na viagem e vi um bando de crianças brincando num corregozinho que passava ali ao lado da rodoviária, perto de um pequeno centro comercial cheio de lojas de comida. E também demorei um pouco a perceber o cheio de fezes e urina impregnado no ambiente, até que me dei conta de que o tal córrego era um esgoto a céu aberto, mas mesmo assim as crianças brincavam, os pais assistiam e vários passageiros comiam arroz e frango nas barraquinhas do lado sem parecer ligar muito pra isso.

Comprei a água e entrei no ônibus, às cinco da tarde. Dezenove horas depois chegava em Santa Cruz de La Sierra, capital do departamento de Santa Cruz e cidade mais populosa e rica de toda a Bolívia.

7/15/2008

Notícias

Bom, vai aqui um post de cinco minutos genérico pra dizer que estou vivo, só pra Bela nao pensar que a profecia dela se concretizou e eu fui sequestrado por um plantador de coca da familia do Evo.

Agora estou em Santa Cruz, e devo hoje mesmo pegar o onibus pra La Paz. Tá meio maluco, porque praticamente vim direto de Bonito até aqui e ainda nao durmi em uma cama ou tomei um banho em todo esse tempo, apesar de ter passado uma tarde rodando Corumbá atrás de carteira de vacinacao e guia turistico e metade do dia de hoje passeando aqui em Santa Cruz, ambos debaixo de um sol de rachar.

Mas tá praticamente tudo acertado agora. Chegando em La Paz acalmo um pouco, fico umas 3 noites e as viagens ficarao mais curtas também, porque as distancias serao menores. Daí provavelmente sobrará um tempinho e eu posto direito o que rolou nos últimos dias.

Só dois comentários: "Cem anos de solidao" é muito legal, mas ainda preferi "O amor nos tempos do cólera". E "O alquimista" me decepcionou. Será que todos os livros do Paulo Coelho sao assim?

PS: Me perdoem a falta de tils. Ainda temos que ensinar esses bolivianos a fazerem teclados que prestam.

7/12/2008

23 horas depois

23 horas depois desci do ônibus em Campo Grande. Não entendi ainda até agora porque estava convencido (e até escrevi isso no post abaixo) que a viagem duraria dezesseis horas. Na verdade era pra ter durado vinte, mas como tudo que é bom acaba rápido, acabei sendo premiado com as três extras.

Mas apesar de parecer um pouco demais, a viagem não foi de todo ruim. Li para caralho, vi um nascer de sol espetacular nas plantações de cana perto de Olímpia, SP, reclamei com as velhinhas do ônibus da demora nas paradas, me surpreendi com a água azul da usina de Jupiá, atravessei metade do Mato Grosso do Sul e cheguei na capital exatamente na hora de ver o pequeno amontado de prédios do centro contra o sol poente mas com as luzes já acessas, o que também foi bem legal.

Aliás, estado estranho esse o MS. Aqui é tão reto que dá pra viajar uns 300 km sem se avistar hora nenhuma um morro que seja morro o suficiente para merecer o nome. Isso me fez lembrar de uma história que me contaram sobre umas crianças que nasceram e viveram a vida toda em Palmas, foram passear em Minas e no meio da viagem desceram do carro pra tirar foto de um morro, de tão assombrados que estavam com a novidade.

Campo Grande, como não podia deixar de ser, é uma cidade bastante surreal. Parece Estados Unidos de vez em quando, porque todo mundo mora em casa (mesmo no centro, exceto por aquele amontoadinho de prédios mencionado acima) e as avenidas são largas e cheias de placas enormes na frente de cada loja. Mas uma andadinha na praça principal já dá a impressão de que ainda não saí de Minas, visto o tanto de gente batendo papo e sentada na beirada do passeio, bem aquele clima de cidade do interior mesmo.

Mas o mais legal de lá é o multiculturalismo. Me assustei primeiro quando vi uma mulher de burca fechando uma loja e conversando com o marido e filho em árabe. Depois vi dois hóspedes libaneses no hotel em que durmi. Daí saí pra passear e vi em lugar de destaque numa banca de revistas o jornal Nippo-Brasil. Mas o clímax foi quando entrei na pastelaria Hong Kong - logo ao lado da lanchonete Zhu - e tive que me segurar bravamente para não rir na cara da proprietária, que pediu à cozinheira cara-de-índia um suco de "lalanja e acelola". Foi lá, inclusive, que abri mão temporariamente do meu vegetarianismo e comi uma tortinha de frango com palmito e um empanado de presunto e ovo, pois estava com uma forte suspeita de que minha dieta restritiva de pão-de-queijo e pão-de-forma com geléia tinha alguma coisa a ver com a minha saúde fragilizada.

Sim, eu ainda não contei, mas fiquei doente. Tudo começou com um discreto arranhão na garganta durante a primeira noite que passei dentro do ônibus. A situação piorou durante o dia, quando tive quase certeza que estava com febre e a dor de cabeça me impedia de continuar lendo. Cheguei em Campo Grande e me auto-mediquei: um frasco da milagrosa própolis com romã e duas cartelas de um anti-gripal sinistro. Esse último fez efeito quase que imediato, pois durante a noite acordei e minha febre já havia passado. Já a garganta ainda dói, mas a própolis, como todos sabem, tarda mas não falha.

Vim pra Bonito e passei vergonha no ônibus. O motorista, gritando, me chamava de mentiroso e ameaçava desviar o caminho para parar no posto da polícia rodoviária, pois eu tinha perdido o tiquete e recusava pagar novamente. Mas não deixei barato; revidei, respondi que ele poderia me chamar de tudo menos de mentiroso e ladrão e que eu havia pago pelo bilhete e ele próprio fora quem o recolheu da minha mão e não devolveu. Daí fui mostrar visualmente como o papelzinho não estava na minha pochete ou nos meus bolsos quando coloquei a mão sobre o bolso esquerdo e escutei aquele barulho típico de papel amasado. Tá, sou idiota, mas que ele xingou primeiro xingou.

Cheguei aqui e fiz amizade com um holandês de nome estranho, que se escreve Gjis mas se pronuncia, de acordo ele próprio, igual aquela "moeda antiga que vocês tinham no Brasil antes do Real". Com muito esforço, consegui entender que a moeda a qual se referia era réis, e desde então o chamo assim. Fato curioso: o cara já viajou toda a metade sul do Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina incluindo capitais, e falou que a cidade mais legal de todas é Ciudad del Este, do lado de lá da fronteira do contrabando. Se ele é sádico ou simplesmente engraçadinho eu ainda não descobri, mas assim que souber conto.

Alugamos duas bicicletas sem marcha (cinco reais mais baratas) e fomos pro Balneário Municipal. Lá ficamos vendo os peixes, assistindo as araras vermelhas e azuis voar de lá pra cá e viajando na água clarinha, azulzíssima, que me lembrou bastante Tahoe, onde morei ano passado nos Estados Unidos. Na volta, também vimos uns três tucanos e um viado-campeiro morto na estrada, atropelado.

Na correria, esqueci de trazer o cabo USB da câmera, então não dá pra dar upload nas minhas próprias fotos. Mas vão umas decorativas de qualquer jeito, pro blog ficar colorido. Posto mais amanhã ou depois.

Balneário, vista aérea

Peixes

A arara, mas só vi de longe e era só uma

PS: tomei um susto cabuloso ao tentar ligar o aquecedor da água do chuveiro. O aquecimento é a gás, mas ninguém me ensinou como ligava, então fui fuçar e de repente uma explosão gigantesca saiu da caixinha e queimou grande parte dos meus pêlos manuais do lado esquerdo da mão direita, principalmente os do dedão. Agradeço a Deus por não completar a amputação, se é que ele lê este blog.

7/10/2008

Rumo ao oeste

E a viagem de estréia começa hoje, mais exatamente às oito horas. Nesse horário, estarei saindo de Belo Horizonte numa viagem de 16 horas até Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. De lá, vou pra Bonito, vejo umas cachoeiras, parto pra Corumbá, atravesso pra Bolívia, passeio por La Paz, cruzo para o Peru, vou até Machu Picchu, desço para o Chile, durmo no deserto e volto pro Brasil, sem ainda saber direito por qual caminho.

Algumas coisas já começaram dando errado. Carteira de estudante por exemplo não teve como fazer, porque o pessoal da STB tá temporariamente impossibilitada de emitir novas carteirinhas e eles são os únicos que fazem isso em BH. O certificado de vacinação internacional foi outro que deu errado, porque a galera da ANVISA tá de greve, ou seja, vou ter que pegar o meu só na fronteira com a Bolívia mesmo. Também tive um pequeno probleminha em relação ao cartão do Banco do Brasil e estou sendo meio que obrigado a viajar apenas com dinheiro em espécie. Ah, e também teve toda a confusão que deu pra decidir os parceiros de viagem cujo desfecho acabou sendo essa minha viagem solitária. E isso sem contar que apenas anteontem fiquei sabendo através do meu chefe no estágio que tenho que estar de volta a BH no dia 4 de agosto, ao invés do dia 15 como estava planejado.

Mas pra mim isso tudo só quer dizer que a viagem já começou emocionante, e pelo nível que as coisas tão, tudo só tende a melhorar. Afinal de contas, se fosse pra viajar sem preocupações, era muito mais jogo ter comprado um daqueles pacote de duas semanas em Porto Seguro da CVC (gracias juju), né? :)

Espero escrever de novo em Bonito ou Santa Cruz de La Sierra, daqui a três ou quatro dias. Abraços!

7/09/2008

Um começo

Sou um cara que gosta de viajar, embora muitas vezes não o faça porque simplesmente deixo as oportunidades passarem. Também sou daqueles que gostam de escrever, mas esse meu lado sofre igualmente do mesmo mal que minha vontade de viajar.

Espero que com esse blog consiga resolver ambas questões. Tanto porque serei meio que impelido a escrever sobre as viagens que irei fazendo ao longo da vida quanto porque o próprio fato dele existir poderá servir como incentivo para aproveitar melhor as chances de passar o fim-de-semana em alguma barraca ou quarto de albergue por aí.

Já tive uma experiência com blog de viagens, esse aqui. Mas a intenção do "A Pé ou Voando" é um pouquinho mais ousada, já que não vai se resumir a apenas uma viagem, e talvez por isso suas chances de não ficar tão obsoleto quanto o anterior - segundo o qual ainda estou em Moscou apesar de respirar somente ar brasileiro pelos últimos sete meses - são maiores.

Bom, o monstro foi criado. Agora, é só esperar pra ver se terá vida longa ou não.